Capítulo 35
Elizabeth reflete sobre a carta
Se Elizabeth, quando recebeu a carta das mãos do Sr. Darcy, não esperava que ela contivesse a repetição das propostas dele, também não tinha qualquer ideia sobre o que ela pudesse versar. É fácil, portanto, imaginar com quanta avidez ela a percorreu e quantas emoções contraditórias o seu conteúdo produziu no seu espírito. Os seus sentimentos durante a leitura não se podiam definir. Começou por constatar, com assombro, que ele acreditava poder desculpar-se, pois estava persuadida de que um justo pudor o impediria de dar qualquer explicação. Fortemente prevenida contra tudo o que ele pudesse dizer, começou a ler o seu relato do que tinha acontecido em Netherfield. Leu com uma ansiedade que quase a impedia de compreender; a impaciência de saber o que a próxima frase traria incapacitava-a de aprofundar o sentido daquela que tinha diante dos olhos. Elizabeth desde logo decidiu que era falsa a alegação do Sr. Darcy de que ele acreditara na insensibilidade da sua irmã. As suas outras objecções contra o casamento, as mais difíceis de aceitar, enfureciam-na a tal ponto que aboliam todo o seu desejo de ser justa. As palavras de Darcy não exprimiam qualquer arrependimento; o seu estilo não era o de quem se queria desculpar. Era arrogante, orgulhoso e insolente.
Porém, quando
passou para o outro assunto, depois de ter lido, com mais atenção, o relato de
acontecimentos que, se verdadeiros, deitariam por terra a sua elevada opinião
do Sr. Wickham, e que aliás ofereciam uma semelhança alarmante com a história
que o Sr. Wickham contara a seu próprio respeito, os seus sentimentos
aumentaram de intensidade e tornaram-se ainda mais difíceis de definir.
Assombro, apreensão, e até horror, oprimiam-na. Recusando-se a acreditar em tal
coisa, exclamava repetidamente: «É falso! Não pode ser! Trata-se de uma tremenda
mentira!»; e, após ter lido toda a carta, apesar de ter passado por alto e já
não se lembrar do que lera nas duas últimas páginas, Elizabeth guardou
precipitadamente a carta, decidida a não tornar a olhar para ela.
Neste confuso
estado de espírito, assaltada por pensamentos que não se concretizavam, ela
continuou andando, sem rumo certo; mas não era solução; em meio minuto a carta
foi de novo desdobrada, e, concentrando toda a sua atenção, ela retomou de novo
a mortificante leitura de tudo o que dizia respeito a Wickham e esforçou-se por
pesar o sentido de cada frase. A história das suas relações com a família de
Pemberley condiziam exactamente com o que ele próprio lhe contara; e a bondade
do falecido Sr. Darcy, embora anteriormente não lhe conhecesse toda a sua
extensão, concordava igualmente com as próprias palavras dele. Até aqui as duas
narrativas coincidiam: mas, quando ela chegou ao testamento, a diferença era
grande. Conservava ainda frescas na memória as palavras de Wickham, e, ao
compará-las ao presente relato, tornava-se-lhe evidente a existência de uma
grosseira duplicidade em qualquer dos lados; e, por alguns momentos, ela teve a
esperança de que a verdade coincidisse com os seus desejos. Porém, depois de
ler e reler com a maior atenção os detalhes que se seguiam imediatamente à
desistência de Wickham de todos os direitos ao lugar que lhe fora destinado,
recebendo em troca a soma considerável de três mil libras, novamente ela foi
forçada a hesitar. Afastou a carta, pesou cada circunstância com aquilo que ela
considerava imparcialidade, ponderou na probabilidade de cada testemunho, mas
sem grande êxito. Tanto de um lado como do outro, havia apenas as afirmações em
que se basear. Retomou a leitura. Mas cada linha provava mais claramente que a história,
que a princípio achara impossível interpretar de maneira a tornar a conduta do
Sr. Darcy menos infame, podia ser vista sob um prisma que o ilibava
inteiramente.
A extravagância
e a dissolução que o Sr. Darcy não hesitava em atribuir ao carácter do Sr.
Wickham feriam-na extremamente; tanto mais que ela não podia apresentar uma
prova de que essas acusações eram injustas. Elizabeth nunca ouvira falar em
Wickham antes da sua entrada no destacamento, no qual ele se incorporara por
sugestão de um jovem que ele acidentalmente encontrara em Londres. Nada se
sabia no Hertfordshire que dissesse respeito ao seu género de vida anterior, a
não ser o que ele próprio tornara público. Quanto ao seu verdadeiro carácter,
mesmo que isso lhe fosse possível, Elizabeth nunca se sentira tentada a
aprofundá-lo e fazer investigações nesse sentido. A sua figura, voz e modos
haviam bastado para que ela lhe atribuísse todas as virtudes. Ela buscou nas
suas recordações algum exemplo de bondade, de algum traço marcante de integridade
ou de benevolência que o pudesse imunizar dos ataques do Sr. Darcy; ou, pelo
menos, de uma virtude que prevalecesse sobre aquilo que este, por
incompatibilidade, descrevera como sendo ociosidade e vício e em que ela
procurava ver apenas uma série de erros casuais. Mas nada encontrou dessa
natureza. Recordava-se perfeitamente dele, com todo o encanto das suas boas
maneiras, mas não via maneira de atribuir-lhe um acto concreto de virtude que
merecesse a aprovação geral da sociedade e a consideração que ele desfrutava
entre os oficiais. Após reflectir consideravelmente sobre este ponto, voltou de
novo a ler. Mas, infelizmente, a história que se seguia, relativa aos seus
desígnios de raptar a Menina Darcy, era confirmada pela conversa que na manhã
anterior tivera com o coronel Fitzwilliam; e, por fim, o Sr. Darcy apelava para
o testemunho do coronel Fitzwilliam, de modo que ela pudesse ,obter a
confirmação de cada pormenor da sua versão. Sabia, por informação prévia do
coronel, que este estava intimamente ligado a todas as circunstancias da vida
de seu primo e não tinha motivo algum para duvidar do seu carácter. Por
momentos, ela esteve quase tentada a procurar o coronel, mas em breve pôs a
ideia de parte, pois não só tal atitude exigiria uma explicação embaraçosa,
como também estava ciente de que o Sr. Darcy jamais a teria sugerido se não
tivesse a certeza absoluta da confirmação do seu primo.
Ela lembrava-se
perfeitamente da conversa que tivera com o Sr. Wickham, naquela primeira noite
em casa da Sr.a Philips. Muitas das expressões que ele usara conservavam-se
ainda frescas na sua memória. Ela compreendeu, então, de súbito toda a
impropriedade que havia naquelas confidências feitas a uma pessoa estranha e
admirou-se de nunca haver pensado isso antes. Percebeu a indelicadeza daquela
exibição e a incongruência entre as suas afirmações e a sua atitude.
Lembrava-se de que ele se ufanara de não temer um encontro com o Sr. Darcy, que
o outro se afastasse, se quisesse, mas que ele se manteria ali. Contudo, na
semana seguinte ele encontrou maneira de fugir ao baile em Netherfield.
Recordou-se também de que, até ao momento da partida da família de Netherfield,
ele se abstivera de contar a sua história a outra pessoa, mas que a partir daí
ela fora comentada em toda a parte; que ele não tivera então nenhum escrúpulo
em denegrir o carácter do Sr. Darcy, apesar de lhe ter declarado a ela que o
respeito pela memória do pai sempre o impediria de acusar o filho.
Como tudo lhe
parecia agora diferente! As suas atenções para com a Menina King eram a
consequência de odiosas intenções puramente mercenárias; e a reduzida fortuna
da rapariga não provava tanto a moderação dos desejos do pretendente, como a
sua ansiedade em se agarrar à primeira oportunidade que lhe aparecesse. Quanto à
atitude dele para com ela própria, Elizabeth era levada a pensar que ou ele se
enganara a respeito da sua fortuna, ou agira por pura vaidade, encorajando uma
preferência que ela tivera a imprudência de revelar. Todos os esforços de
Elizabeth para justificá-lo se tornaram cada vez mais ténues. E, como
justificação adicional ao que dissera o Sr. Darcy, ela não podia esquecer-se do
que dissera o Sr. Bingley, que, quando interrogado por Jane, respondera
categoricamente pela inocência do amigo. Por mais orgulhosos e desagradáveis
que fossem os modos do Sr. Darcy, nunca Elizabeth, no decurso das suas relações
com ele - relações essas que ultimamente se tinham declarado com uma certa
assiduidade, proporcionando a ela um conhecimento mais íntimo do seu carácter -,
lhe encontrara algo que o definisse como uma pessoa sem escrúpulos ou injusta,
ou possuindo hábitos irreligiosos ou morais. Todos os seus amigos o prezavam, e
até Wickham lhe havia reconhecido qualidades como irmão. Ouvira-o várias vezes
falar afectuosamente da sua irmã, o que provava que ele era capaz de
sentimentos ternos. Acaso os seus actos fossem tais como Wickham os descrevera,
acaso houvesse violado tão brutalmente todos os direitos, dificilmente ele
poderia ocultar essa sua conduta aos olhos do mundo. E, se ele fosse capaz de
tamanha injustiça, não se explicaria a sua amizade com um homem tão estimável
como o Sr. Bingley.
Elizabeth sentiu
então uma vergonha profunda. Não podia pensar em Darcy nem em Wickham sem ver
que ela tinha sido cega, parcial, injusta e absurda.
«Como foi
mesquinho o meu comportamento!», exclamou ela, «eu, que me orgulhava tanto do
meu discernimento, das minhas capacidades! Eu, que tantas vezes desdenhei a
generosa candura da minha irmã e gratifiquei a minha vaidade com inúteis e
censuráveis desconfianças. Como é humilhante esta descoberta! Mas como é justa
esta humilhação! Não poderia ter agido mais cegamente, se estivesse apaixonada!
Mas foi a vaidade, e não o amor, a minha loucura! Lisonjeada pela preferência
de um deles e ofendida com a negligência do outro, logo no início das nossas
relações cortejei a parcialidade e a ignorância e expulsei a razão. Até este
momento, eu não conhecia a minha verdadeira natureza.»
Dela para Jane e
de Jane para Bingley, os seus pensamentos seguiram um curso que em breve lhe
sugeriram a ideia original de que a explicação do Sr. Darcy a esse respeito lhe
parecera insuficiente, e ela voltou a lê-la. Que diferente foi o efeito desta
segunda leitura. Como lhe seria possível dar valor às afirmações do Sr. Darcy
num ponto e negar lho noutro? Declarava ele que estava bem longe de suspeitar
da afeição de sua irmã; e Elizabeth recordou-se da opinião de Charlotte. Nem
tão-pouco poderia negar que fosse justa a sua descrição de Jane. Ela sabia que
Jane, embora capaz de fervorosas afeições, pouco as exteriorizava; e reconhecia
que havia nos seus modos uma placidez que raramente se encontra unida a uma
grande sensibilidade.
Quando chegou
àquela parte da carta em que a sua família é mencionada, em termos
mortificantes, mas merecidos, ela sentiu-se ainda mais envergonhada. No
entanto, a justiça de tais afirmações era inegável, e as circunstancias que ele
mencionava, particularmente as que se referiam ao baile de Netherfield e que
confirmavam as suas primeiras impressões desfavoráveis, não haviam causado uma
impressão mais forte no espírito dele do que no seu.
Elizabeth não
ficou insensível ao elogio que Darcy lhe fizera, bem como à irmã. Tal elogio,
porém, embora suavizasse a sua mortificação, não compensava o desdém que o
resto da sua família suscitava pela sua conduta. E, ao reflectir que o desgosto
de Jane tinha sido de facto causado pelos seus parentes mais próximos, cuja
singularidade prejudicava o bem de ambas, ela sentiu-se tão deprimida como
nunca antes estivera.
Após ter
passeado pela azinhaga durante duas horas, entregando-se a toda a espécie de
pensamentos, relembrando acontecimentos, determinando probabilidades e
reconciliando-se como podia com uma mudança tão súbita e tão importante, o
cansaço e a lembrança de que ficara muito tempo ausente fizeram que ela
voltasse para casa; e, ao entrar, fez um esforço sobre si mesma, a fim de
parecer alegre como de costume, reprimindo todas as reflexões que a
incapacitassem de tomar parte na conversação.
Participaram-lhe
imediatamente que os dois cavalheiros de Rosings tinham aparecido durante a sua
ausência, o Sr. Darcy apenas durante alguns minutos, mas que o coronel
Fitzwilliam esperara pelo menos uma hora pelo seu regresso, quase decidindo-se
a partir a pé em busca dela. Elizabeth fingiu sentir-se decepcionada; mas, na
verdade, ela regozijava. Tinha perdido todo o interesse pelo coronel
Fitzwilliam; ela só pensava na carta.
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